segunda-feira, 18 de junho de 2007

Cantares do sem nome e de partida  « Hilda Hist «

Ó tirânico Amor, ó caso vário
Que obrigas um querer que sempre seja
De si contínuo e áspero adversário...

Luiz Vaz de Camões
Cubram-lhe o rosto, meus olhos ofuscam-se;
ela morreu jovem.
John Webster


I

Que este amor não me cegue nem me siga.

E de mim mesma nunca se aperceba.

Que me exclua do estar sendo perseguida

E do tormento

De só por ele me saber estar sendo.

Que o olhar não se perca nas tulipas

Pois formas tão perfeitas de beleza

Vêm do fulgor das trevas.

E o meu Senhor habita o rutilante escuro

De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor me faça descontente

E farta de fadigas. E de fragilidades tantas

Eu me faça pequena. E diminuta e tenra

Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


II

E só me veja

No não merecimento das conquistas.

De pé. Nas plataformas, nas escadas

Ou através de umas janelas baças:

Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias

E só me veja no não merecimento e interdita:

Papéis, valises, tomos, sobretudos

Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar

de púrpura e desgosto, vendo através de mim

navios e dorsos).

Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes.

Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis

Machucadas de gozo.

E que jamais perceba o rocio da chama:

Este molhado fulgor sobre o meu rosto.


III

Isso de mim que anseia despedida

(Para perpetuar o que está sendo)

Não tem nome de amor. Nem é celeste

Ou terreno. Isso de mim é marulhoso

E tenro. Dançarino também. Isso de mim

É novo: Como que come o que nada contém.

A impossível oquidão de um ovo.

Como se um tigre

Reversivo,

Veemente de seu avesso

Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.

Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso

Dançarino e novo, ter nome de ninguém

E preferir ausência e desconforto

Para guardar no eterno o coração do outro.


IV

E por que, também não doloso e penitente?

Dolo pode ser punhal. E astúcia, logro.

E isso sem nome, o despedir-se sempre

Tem muito de sedução, armadilhas, minúcias

Isso sem nome fere e faz feridas.

Penitente e algoz:

Como se só na morte abraçasses a vida.

É pomposo e pungente. Com ares de santidade

Odores de cortesã, pode ser carmelita

ou Catarina, ser menina ou malsã.

Penitente e doloso

Pode ser o sumo de um instante.

Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte.

Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo

Que só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.


V

O Nunca Mais não é verdade.

Há ilusões e assomos, há repentes

De perpetuar a Duração.

O Nunca Mais é só meia-verdade:

Como se visses a ave entre a folhagem

E ao mesmo tempo não.

(E antevisses

Contentamento e morte na paisagem).

O Nunca Mais é de planície e fendas.

É de abismos e arroios.

É de perpetuidade no que pensas efêmero

E breve e pequenino

No que sentes eterno.

Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.


VI

Tem nome veemente. O Nunca mais tem fome.

De formosura, desgosto, ri

E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais

Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue.

E perseguido és novo, devastado e outro.

Pensas comicidade no que é breve: paixão?

Há de se diluir. Molhaduras, lençóis

E de fartar-se,

O nojo. Mas não. Atado à tua própria envoltura

Manchado de quimeras, passeias teu costado.

O Nunca Mais é a fera.


VII

Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.

Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos

Porque me fiz tanto de ressentimentos

Que o melhor é partir. E te mandar escritos.

Rios de rumor no peito: que te viram subir

A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras

Mas com a mulher, aquela,

Que sempre diante dela me soube tão pequena.

Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.

Perdi-me tanto em ti

Que quando estou contigo não sou vista

E quando estás comigo vêem aquela.


VIII

Aquela que não te pertence por mais queira

(Porque ser pertencente

É entregar a alma a uma Cara, a de áspide

Escura e clara, negra e transparente), Ai!

Saber-se pertencente é ter mais nada.

É ter tudo também.

É como ter o rio, aquele que deságua

Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.

Aquela que não te pertence não tem corpo.

Porque corpo é um conceito suposto de matéria

E finito. E aquela é luz. E etérea.

Pertencente é não ter rosto. É ser amante

De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.

Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.

É vida e ferida ao mesmo tempo, "Esse"

Que bem me sabe inteira pertencida.


IX

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.

Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.

E pensas maravilha quando pensas anca

Quando pensas virilha pensas gozo.

Mas tudo mais falece quando pensas tardança

E te despedes.

E quando pensas breve

Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano

Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.

E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas

Luta, ascese, e as mós vão triturando

Tua esmaltada garganta... Mesmo assim mesmo

Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...

Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade

A esperança.


X

Como se fosse verdade encantações, poemas

Como se Aquele ouvisse arrebatado

Teus cantares de louca, as cantigas da pena.

Como se a cada noite de ti se despedisse

Com colibris na boca.

E candeias e frutos, como se fosses amante

E estivesses de luto, e Ele, o Pai

Te fizesse porisso adormecer...

(Como se se apiedasse porque humana

És apenas poeira,

E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia).

Como se fosse vão te amar e por isso perfeito.

Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se.

E não é Ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego

O Seguidor disso sem nome? ISSO...

O amor e sua fome.



(Munirah thinking about Sami)

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