Notícias de lá

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Eis um assunto que é geralmente esquecido, ou que se prefere esquecer: as sucessivas vagas de imigrantes subsarianos que, através do território de Marrocos ou da Líbia, tentam desesperadamente atingir solo europeu.
Vem hoje na primeira página do Público (não deixo link porque o acesso é pago): 16 mil imigrantes ilegais já chegaram este ano às ilhas Canárias, batendo de longe o anterior recorde. Se a este quase fait divers juntarmos as notícias velhas de alguns meses sobre a desesperada carga colectiva sobre as vedações que separam Marrocos de Ceuta e os pequenos apontamentos que por vezes surgem sobre as prisões (também conhecidas como "centros de acolhimento") para ilegais na italiana Lampedusa, temos mais do que factos isolados, como à força tentamos pensar.
Mais do que discutir o problema em si, interessa-me mais - desde que há um ano ou dois li uma lancinante reportagem de Paulo Moura na revista dominical do Público - a dimensão humana do drama. Paulo Moura é um repórter cujos trabalhos leio avidamente, desde que há largos anos deparei com uma série de reportagens sobre o País Basco e a convivência com a ETA, tão boas que, coisa que nunca faço, me dei ao trabalho de fixar o nome do autor. Desde aí procuro sempre nas reportagens do Público ou da sua revista o seu nome, pois sei que a sua leitura me fará embarcar numa vertigem indizível. Paulo Moura foi depois enviado especial na guerra do Iraque - e quem conhece o seu estilo algo sui generis de escrita saberá que essas suas reportagens são simplesmente imperdível. Depois disso, nunca mais vi o seu nome no meu jornal de eleição, até que algum tempo depois surgiu a tal grande reportagem sobre imigrantes ilegais nas florestas marroquinas, e eu percebi o que o tinha mantido ocupado durante todo esse tempo.
Soube agora que Paulo Moura escreveu um livro sobre essa experiência. Mesmo sem ler qualquer excerto, não tenho dúvidas em recomendá-lo, e comprá-lo-ei assim que possível. "Passaporte para o Céu", de Paulo Moura, pela Dom Quixote, € 14,85 segundo o site da fnac. Não percam. Como aperitivo, deixo-vos uma crónica deste senhor repórter que descobri no Memória Inventada (uma agradável descoberta):


Também Sou um Ilegal

Sou um ilegal. Por exemplo (e isto é uma confissão que faço publicamente pela primeira vez): numa escaldante noite de Agosto, peguei na moto, a minha saudosa Honda VFR 800 FI, e fui de Lisboa ao Porto a 280 km/h. Nem os radares me detectaram. (...)

Magdalene, uma menina de 16 anos, não tinha dinheiro para pagar, aos mafiosos como Karim, a travessia do Estreito e estava a morrer de febre tifóide numa floresta dos arredores de Ceuta. Como era muito boa aluna na Nigéria, acreditava que, mal chegasse à Espanha, teria uma bolsa do Governo para prosseguir os estudos. Quando lhe perguntei porque teria essa sorte, quando todas as outras nigerianas são obrigadas a prostituir-se, deu-me a resposta mais inteligente que eu ouvi em toda a minha carreira de jornalista: "Porque o meu Deus te vai usar a ti para me ajudar".
Eu decidi escondê-la na mala do carro, trazê-la para Portugal e tratar dela. Fui à fronteira investigar as probabilidades de sermos revistados e apanhados, congeminei planos e estratégias, mas decidi não a trazer. Abandonei a Magdalene.

O chefe da floresta, um nigeriano alto com ar de cowboy a quem chamavam o "Americano", fez-me prometer-lhe outro tipo de ajuda. Regressou à Nigéria e pediu-me por email que entregasse na embaixada uma carta de recomendação com um termo de responsabilidade e um convite para visitar Portugal.
O "Americano" era um homem inteligentíssimo que, se tivesse realmente nascido nos EUA, seria um prestigiado professor ou advogado.
Como nasceu na Nigéria, era o chefe da Mafia.
Num outro email, mandou-me fotografias de duas estatuetas africanas do século XII A.C saqueadas num museu. Explicava que pertenciam à sua família e pedia-me que lhe encontrasse comprador. Seria o início da sua vida de homem de negócios em Portugal.
Pensei numa das tiradas Michel Houellebec: nós não odiamos os imigrantes por os considerarmos inferiores. Tememo-los porque achamos que são melhores do que nós.
E menti: escrevi ao embaixador português dizendo que o sr. M. Era um homem de bem e que vinha passar férias a minha casa. Se o plano do "Americano" para obter um visto resultou, cuidado: ele está aí a chegar!

Ao contrário de Magdalene, Aimee conseguiu atravessar. Mal desembarcou em Algeciras, a mafia enviou-a para Lisboa, onde se prostitui na praça do Intendente. Fui lá muitas vezes entrevistá-la, no âmbito dos meus trabalhos sobre imigração. Tornei-me amigo dela e das outras jovens nigerianas. Um dia, soube que ia haver uma grande rusga da Polícia e telefonei a avisá-las. "Aimee, fujam daí rapidamente, a Polícia vai prender todos os ilegais". Salvei-as.
Foi um dos dias mais felizes de que me lembro, confesso-o publicamente pela primeira vez.
Sou famoso no Intendente. Chego lá e um enchame de prostitutas negras corre a abraçar-se a mim: Paulô, Paulô! A Polícia pensa que sou um traficante disfarçado de chulo e deixa-me em paz.


Paulo Moura, Público, 2.4.06
http://altermundo.blogs.sapo.pt

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