Um olhar árabe sobre o Brasil Império

terça-feira, 23 de outubro de 2007

São Paulo – O único registro conhecido do olhar de um árabe muçulmano sobre a sociedade brasileira do século 19. Este é o conteúdo do livro "Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali", que será lançado amanhã (24) no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Trata-se da tradução comentada de um manuscrito feito pelo imã Abdurrahmán Al-Baghdádi, nascido em Bagdá e criado na Síria, sobre os três anos em que viveu no Brasil, de 1865 a 1868.

As traduções, comentários e análises, feitas pelo professor Paulo Farah, da Universidade de São Paulo (USP), foram reunidas em um único volume que traz os textos em três idiomas: português, árabe e espanhol. O livro é o primeiro da Biblioteca América do Sul-Países Árabes, iniciativa lançada durante a Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), realizada em maio de 2005, e foi editado pelas bibliotecas nacionais de Argel, Caracas, Rio de Janeiro e pela Biblioteca Ayacucho, da Venezuela.

"Creio que o livro é uma fonte muito importante não só para entender a presença árabe e muçulmana no Brasil, mas também para outras áreas de estudo, como a lingüística, história, geografia, entre outras", disse Farah à ANBA. Embora tenha sido escrito totalmente em caracteres árabes, o manuscrito contém palavras em diversas línguas além do árabe, como turco-otomano, persa, grego, francês, português e tupi, com as quais Al-Baghdádi travou contato durante seus estudos e viagens.

Em especial, Farah destaca a importância da obra para o estudo da história social da escravidão no Brasil. Durante a maior parte do tempo em que esteve no país, o imã conviveu com escravos muçulmanos vindos da África, entre eles remanescentes da revolta do malês, levante de escravos urbanos ocorrido em 1835, em Salvador.

"Isto nos ajuda a compreender um pouco mais os mecanismos da escravidão no Brasil, o cotidiano dos escravos visto por alguém que conviveu intimamente com esta realidade e teve acesso a tais informações", afirmou o professor.

Além de autoridade religiosa, Al-Baghdádi era também um erudito que estudou literatura, jurisprudência, teologia, árabe e persa. Portanto, mais do que observações sobre religião e de cunho social, o imã fez relatos sobre a fauna, a flora, a cultura e a organização política do Brasil. Vindo do império otomano, que na época dominava boa parte do Norte da África e do Oriente Médio, o autor viu o país também com olhos de alguém acostumado com a diversidade étnica, cultural e religiosa. "Ele reproduziu o olhar de alguém que respeita uma sociedade plural", disse Farah.

Todos estes fatores fizeram com que o relato de Al-Baghdádi fosse diferente daqueles feitos por viajantes europeus e norte-americanos da mesma época. Ao falar sobre a estrutura social brasileira e da burocracia imperial, por exemplo, ele analisa a proibição, na época, da prática de religiões não católicas e de que maneira isto influía no dia a dia dos escravos, com orações clandestinas, e na organização destes povos. Segundo Farah, como religioso, o imã procurou destacar a grandiosidade da obra divina no Brasil.

"(Os muçulmanos de Pernambuco) possuem uma forte inclinação para os quadrados mágicos, a geomancia, a numerologia e o sentido místico das letras árabes. Por causa disso, escondem-se menos do que (os muçulmanos) nas primeiras cidades (Rio de Janeiro e Salvador), pois os cristãos confiam muito neles e acreditam no que eles demonstram de suas intenções", diz o imã em uma das passagens do manuscrito. Em sua estada no Brasil ele morou no Rio, Salvador e no Recife.

Sobre o estado brasileiro, Al-Baghdádi relata: "É um território que pertence à América do Sul. Foi conquistado pelos filhos de Portugal, que desprenderam um grande esforço para erguer e embelezar suas construções e sua arquitetura. Depois disso, nomearam um dos filhos de seus reis para governar o país. Mas ele se apoderou (do governo do Brasil), opôs-se ao pai e tornou-se independente dele." O trecho refere-se a D. Pedro I, que proclamou a independência do país em 1822.

Ao falar do sabor e da aparência das frutas brasileiras, o imã as compara com plantas existentes no Oriente Médio, como romã, tâmaras, uvas e nozes. "Neste país há uma árvore do tamanho da grande nogueira; ou melhor, é ainda maior. Possui frutos maiores do que a abóbora, pendurados no tronco e nos grossos galhos da árvore. A parte externa assemelha-se à pele de um crocodilo e seu interior, a olho, tem o aspecto de uma romã, embora a semente seja como uma tâmara, e no interior de cada semente há um núcleo semelhante (à semente). Seu sabor se parece com um doce feito de farinha e mel", diz ele em outra passagem, provavelmente se referindo à jaqueira e à jaca.

Viajantes

Al-Baghdádi chegou ao Brasil a bordo de um navio do Império Otomano vindo de Istambul. Originalmente ele deveria seguir viagem para Basra, hoje parte do Iraque, mas decidiu ficar após saber da presença de muçulmanos no país. "No segundo dia, os oficiais de nossas forças militares islâmicas saíram para inspecionar esta magnífica cidade (Rio de Janeiro), e assim, quando me dirigi ao porto e contemplava as imagens e as feições, um negro veio a mim e disse 'as-salámu alaykum' ('que a paz esteja contigo', tradicional saudação muçulmana). Ele reservou sua saudação a mim apenas e não para as demais pessoas, pois minha roupa integrava um turbante e um traje formal e evidenciava o aspecto de erudição", relata o imã.

Segundo Farah, depois de passar três anos no Brasil, Al-Baghdádi iniciou sua viagem de volta. Passou por Lisboa, Gibraltar, Argel, Alexandria, fez a peregrinação a Meca, visitou sua família em Damasco e finalmente chegou a Istambul. E foi numa biblioteca da cidade turca onde o professor brasileiro encontrou o manuscrito original.

Farah topou pela primeira vez com uma menção ao manuscrito há cerca de 10 anos, quando morava na Síria. Três anos depois, após pesquisas na Síria, Iraque e Turquia, encontrou o documento em Istambul. "As narrativas de viagem me interessam muito. Quando encontro alguma coisa que me desperta o interesse eu vou atrás, para ver se o interesse se confirma", disse.

E se confirmou. Quando encontrado, o manuscrito, segundo o professor, estava em boas condições de conservação. Escrito em linguagem rebuscada e em alguns trechos poética, o documento consumiu sete anos de trabalho desde sua liberação pela biblioteca turca até a publicação do livro. Farah se dedica muito ao estudo de documentos escritos em línguas não-européias, tendo inclusive uma coleção deles.

Descendente de árabes, Farah, de 35 anos, é professor de graduação e pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, diretor do Centro de Estudos Árabes da Universidade e da Biblioteca Aspa. Ele já escreveu outros livros, como "O Islã, glossário de termos islâmicos" e "ABC do Mundo Árabe", uma obra didática para crianças. Ele também já traduziu publicações como "O Beco do Pilão", de Naguib Mahfuz, egípcio Prêmio Nobel de Literatura que morreu no ano passado.

Durante cinco anos Farah morou na Síria, Egito e no Kuwait. Durante suas viagens, ele já esteve nos 22 países árabes.

Serviço

"Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali"
De Paulo Daniel Elias Farah
Editada pelas bibliotecas nacionais da Argélia, Caracas, Rio de Janeiro e pela Biblioteca Ayacucho, da Venezuela
Volume trilíngüe (árabe, português e espanhol) com 480 páginas



Alexandre Rocha
http://www.anba.com.br/noticia.php?id=16294

1 comentários:

João Moutinho disse...

Olá,
Li o texto e só posso dizer que está lindo.