Luiz Carlos Merten - O Estado de S.Paulo
Olhe a foto aí acima. Nela aparecem Adel Benchérif e Tahar Rahim. Interpretam os amigos Malik e Ryad em O Profeta. Havia a expectativa de que o grande filme de Jacques Audiard ganhasse a Palma de Ouro em Cannes, no ano passado. O júri presidido por Isabelle Huppert preferiu A Fita Branca, de Michael Haneke, outorgando a O Profeta o segundo prêmio em importância, o Grand Prix. Os dois filmes concorreram ao Oscar e perderam para o argentino O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella.
Voltemos a O Profeta. O filme venceu o César, o Oscar francês. Tahar Rahim foi duplamente vitorioso - melhor ator e melhor esperança masculina, o prêmio com que a Academia Francesa destaca os novos talentos. O Profeta tem feito uma bela carreira, de público e crítica, em todo o mundo. O virtuosismo de Jacques Audiard é indiscutível. O filme também tem provocado polêmica - Jacques, filho do diretor e roteirista Michel Audiard, estaria reproduzindo, na França, modelos hollywoodianos de ação. Para os próprios franceses, a discussão foi outra. O Profeta expõe a cadeia como escola do crime. Em várias entrevistas, Jacques Audiard disse que os filmes de Hector Babenco, Pixote, a Lei do Mais Fraco e Carandiru, foram faróis em sua vida e certamente o influenciaram na formulação dramática de O Profeta.
Adel Benchérif integrou a delegação que veio ao Brasil para divulgar o Festival Varilux de Cinema Francês. No Rio, ele contou como foi o processo criativo de Jacques Audiard. Admitiu que o universo da cadeia não lhe é estranho - ele próprio esteve preso. O cinema tem lhe aberto novos horizontes, mas o jovem de ascendência tunusina conhece bem o racismo e a discriminação. Até hoje, ainda sente o ódio pelo "estrangeiro", pelo colonizado, que Mathieu Kassovitz retratou num filme justamente chamado La Haine (O Ódio). Mas o que mais lhe doi, ele confessa, é a mudança no relacionamento com os antigos amigos. "Eu acho que continuo o mesmo, mas o olhar deles sobre mim mudou. Não nos frequentamos mais e há hoje uma distância muito grande entre a gente."
Sua mãe mora na Tunísia, e essa é outra distância dolorida. Adel é francês de nascimento. Criou-se em Grenoble. Sua vida poderia ter sido, quem sabe, menos difícil, mas ele se interroga se isso teria mudado sua formação: a sensibilidade seria outra? Teria virado ator? É orgulhoso das raízes tunisinas. Há toda uma história de família, sobre como seus ancestrais "fizeram" a França. Adel começou a carreira interpretando pequenos papéis em Grande École ou na série La Crim", em 2004. Em 2006 e 2007, de novo na TV, conheceu dois grandes sucessos pessoais em outras séries, Djihad e Les Liens du Sang. Foi nelas que Jacques Audiard buscou boa parte do elenco jovem de O Profeta, para compor o grupo que cerca Malik. O personagem de Tahar Rahim vai preso e, na cadeia, torna-se o serviçal do chefão Niels Arestrup.
O jovem árabe e o nórdico. Malik faz sua escalada no crime, Ryad o acompanha como escudeiro fiel. A meta de Malik é ocupar o posto de Arestrup. Não é preciso citar O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, para lembrar outros exemplos notáveis de disputa pelo poder no meio do crime, e neste como representação da democracia étnica. "A experiência na prisão não me havia preparado para o papel", Adel conta. Jacques Audiard confinou seus atores, como parte da preparação. Em nome do realismo de cena, os presidiários que cercam o elenco principal vieram de cadeias de verdade.
Adel fala de seu personagem. "Ryad está doente e sabe que vai morrer. Tem tudo a perder, a mulher e a criança. Ele faz não importa o quê, na certeza de que Malik olhará pelos seus." Laços de sangue, de amizade. É disso que O Profeta também fala. E existe a linguagem dos "árabes". A França inteira cabe na prisão de O Profeta. Adel Benchérif sabe que seu elogio é suspeito. O filme de Jacques Audiard colocou-o em outro patamar de sua carreira. Mas também sabe que é um grande filme. E Jacques? "Ele duvida o tempo todo. Nunca está certo de coisa nenhuma. Mas é um líder, une todos ao seu redor." Mais do que uma experiência artística, O Profeta foi, para ele, uma experiência humana.
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Mirela Goi
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